A Maledicência Como Fastio Existencial
- Eduardo Worschech
- 10 de jan. de 2023
- 7 min de leitura
Atualizado: 19 de jan. de 2023

Não é por acaso que sombras pesadas têm sobrevoado os céus de nossas existências, da potência da vida que nos sobreleva. As duas irmãs, o ódio e a inveja, tem transitado livremente pelos corações vazios de muitos daqueles que circulam ao nosso redor, em nossas vidas sociais. Mas porque agora estes afetos emergiram com tamanho força ?
Do ponto de vista subjetivo, pensando a partir de Baruch de Espinosa, iremos topar com a disposição de espírito do invejoso, que produz para si um mal na qual ele quer ao outro; aquilo que o entristece é o exato oposto do que nos alegra, aumenta nossa potência de viver; mas, o que parece ser do âmbito do sujeito, passa a expandir-se em direção ao coletivo.
A subjetividade neoliberal, senhora dos destinos que se arvora com seu individualismo suicida, tem promovido está avalanche de modos de existência cada vez mais apartados do convívio social, logo, ódio e inveja, afetos com nascedouro interior, mas que passaram a trilhar uma geografia social, a produzir um mapa de devastação partilhado por todos capturados pelo mote da concorrência como existência; da impassibilidade como apego; e do desamor como princípio.
A preponderância de um certo modo soturno, porém aprazível ao sujeito esvaziado de vida, tem promovido nestas subvidas devastadas um processo de reverberação do mal de maneira sistólica.
Como processo de transformação, a natureza exala movimentos de irrigação da vida pelo movimento sistólico, irradiando beleza pela expansão a plenos pulmões de todo seu repertório criador.
Mas, em uma chave contrária, é o mórbido que circunavega os corações apodrecidos dos enfermos da alma e do corpo, que desastrosamente produzem antivida por onde passam. Não nos enganemos com o fascínio em pensar o eu existencial como expressão de um interior fantasmagórico, apartado de um centrípeto familiar ou social; nem nos cause espanto quando da persona do ódio que se travesti com as vestes da subserviência e do baixar a cabeça, própria de personagens kafkianos.
Não sem uma audaz objeção própria, poderia com cautela dizer que o odioso é subproduto de suas relações, mas há uma dobra que merece atenção e poderia estar subsumida pelo maus feitos alheios, advindos do círculo infeliz de tratantes empedernidos.
Derrotados nos planos interno e externo, passam a conjugar não sem segredo um ressentimento não percebido por aquilo que os opõe, aí a inveja. Mas sua irmã caminha como uma sombra junto a ti, promovendo o esmorecimento de tudo a sua volta, o ódio.
Estas derrotas são expressões de algo irrecuperável em algum dado momento de suas vidas ou mesmo a irmandade de pequenos, mas preciosos momentos sórdidos, que se somam a uma lista de arrependimentos, maus fazeres e incompletudes mil. Está lista promove no odioso uma carranca que serve de alimento forçado, uma nutrição pesarosa que o mantém num estado vegetativo ad eternum. Esta dependência de algo ou alguns é necessária, pois se trata indiscernivelmente da circulação venosa que corre em seu invólucro mal dotado, um corpo enfermo.
Nas narrativas míticas, as buscas e esforços empregadas em fluxos de vida propõem de alguma maneira uma certa redenção ao fim, uma mescla de recompensa e reconforto. Nesta tenebrosa antivida ressentida não há ganhos, só perdas; não há redenção. O fracasso de suas trajetórias arrasta todo um mundo para seus desalentos, escavando uma morada fria e de sete palmos de uma ânsia por autodestruição. Quando confrontado, o ressentido se arvora de façanhas que ele não teve, de qualidades que não são suas e de feitos nas quais ele não cumpriu; medíocre desde sempre.
Se ousássemos elencar espaços sociais nas quais o ressentimento poderia ganhar força, não escaparia nenhum em nenhum momento. Uma conjugação de elementos primários é que acabam por formar uma amalgama bastante densa de desgostosos, odiosos em suas ações e maltrapilhos em seus espíritos; incólumes apenas aqueles onde a roda da fortuna não os colocou de cabeça para baixo.
Se a nenhum lugar há uma plenitude, por outro lado a tristeza latente prepondera nos lugares, produzindo um sedentarismo espiritual, mental, psicológico e cognitivo; a imobilidade apodrece corações. De fato, é um elemento que se sobrepõem aos lugares, épocas e pessoas: a própria permanência. A permanência forçada é o elemento que faz perecer as vontades, pois instaura a reprodução de fazeres mesmos, de circularidade hipnótica e labiríntica; e não há quaisquer esperanças de que Teseu possa nos encontrar. Temos como efeito desalentos intencionais, convivências truncadas e interações niveladas pela biles.
Como subproduto, se instaura uma verticalização pautada sobre os falsos pretextos de superioridade, certas hierarquias artificiais emergem de posições de cunho horizontal, sem quaisquer vinculações a lugares de poder vertical, subvertendo ordenamentos de caráter democrático por fétidos autoritarismos velados. Quem se entrincheira nesta vala comum do reacionarismo nem sempre se reconhece no espelho das ações; brutas, antibiológicas e ressentidas. Esta orbita de inversão, predominância dos fracos sobre os fortes de coração, ganha força sempre que o empobrecimento cultural alia-se a uma aversão ao próximo, com recrudescimentos pastoris, senilidades imberbes e carecas lustrosas e sem valor.
Nos assentando nos escritos de Friedrich Nietzsche, os valores morais que circulam por entre os ressentidos, assume sempre e peremptoriamente um NÃO para a vida, para um ‘fora’, um ‘outro’, um ‘não-eu’ – este NÃO é seu ato criador.
Sobrepujado por forças externas, este tipo escravo é impedido por seu próprio desequilíbrio de forças, “ele não é dono de si”; assim, é constrangido e desviado em razão de forças externas que o ultrapassam; expressa falas reativas, como aquelas que corresponsabilizam outros por suas escolhas: “serei mais durão, porque me falaram que sou fraco”; ao escravo, cabe apenas negar a existência enquanto devir, como processo contínuo de transformações. ]
Tudo tem aparência de pesaroso, exigente demais e complicado; logo, em meio aos distúrbios fisiológicos, débeis e pusilânimes, nele, a vontade de potência, própria da afirmação da vida, é gangrenada ao ponto da amputação. Trôpego em seu caminhar, se arrasta por entre as sendas abertas da maledicência, impropérios vis e ao mesmo tempo prazerosos, ao amargo paladar do ressentido.
Este corpo que clama por um fim serve a um duplo: transborda afetos tristes e se enaltece com a ilusão de onipotência. Não sem contradição, está condição promove um curto circuito na estima do ressentido. Ao mesmo tempo fraco, com sentimentos apequenados e submissos as forças externas; também agiganta-se na artificial posição hierárquica, pavoneia bravatas sobre si e nutri seu ódio, com efeito reverso; pois aquele que é de fato seu objeto de atenção é sua própria pessoa.
Estas externalizações cotidianas dão o tom desafinado de uma orquestra de um homem só, na ânsia infecunda de algo produzir, ledo engano. O Não é a pedra de toque do escravo, elemento ontológico e existencial, suas insuficiências atrozes impedem que se possa inflar os pulmões e flanar como as mariposas em seu desfilar gracioso e gentil.
O ódio, como afeto relacional, tem reinado impunemente com a conivência ativa de uma parcela tão expressiva de nossos círculos profissionais que não se pode esperar que quaisquer mutações possam ocorrer num curto ou mesmo médio prazo. As mazelas psíquicas tem como efeito um esvaziamento da fé, da esperança e da solidariedade.
Fé como expressão da irmandade, ao contrário da aporofobia dominante; esperança como horizonte da bem aventurança e solidariedade como reconhecimento do outro em sua singular multiplicidade.
As instâncias instadas a promover estes afetos foram sequestradas para outros fins, todas promotoras de seus contrários; a vida perecerá em nossas mãos pelas nossas próprias mãos. Digo isto, pois, não há quaisquer infalibilidade ou retidão que nos blinde de sermos capturados a todos ou a qualquer um de nós pela névoa espessa e densa da maledicência. Como afetos, o ódio, a vergonha, a humilhação; e todas suas perversas irmãs pesam no ar, com seus grilhões sentimentais, irascíveis e tempestuosos; o que, como um vírus, interpenetra nosso amago e envenena nosso corpo.
Os blocos de defesa, se continuarmos nesta metáfora epidêmica, agem de acordo com cada organismo e suas relações, interações e situações. Não há um antídoto ou mesmo uma panaceia ao bloqueio destas névoas de rancor.
É possível agir de maneira a enfrentar numa luta intersticial, sangrenta e suja este movimento intermitente de maledicências, mas, o confronto é sempre injusto, pois não há honra nesta guerra. A batalha a ser travada é para que estes afetos rebaixados não aprisionem nosso espírito num reduto frio e dilapidado pelo mau agouro; e este sempre será um desafio a altura de gigantes. Se, como apontado, a luta em contraposição ao maledicente é injusta e desleal, de maneira ativa e propositiva é possível barrar ou diminuir as intensidades das forças danosas?
Um ponto a ser levantado em relação a maledicência, é que ela se disfarça com as máscaras das mil faces. O maledicente se transfigura em formas as mais diversas; sempre envolvente e sedutor. Ele é um grande criador de narrativas fantasiosas, sobre todos aqueles descuidados em ouvi-lo. Malicioso, desponta como um cobiçoso apanhador de coscuvilhices alheias, ávido por enquadrar as falas soltas ao vento em uma estória única e difamatória. A predominância da tristeza é a exata somatória deste compilado de maus viveres; parafraseando Ariano Suassuna, vende-se a alma para não conseguir nada ao corpo.
Ao maledicente, a si próprio é impossível refastelar-se em suas vivências, pois a sua inépcia existencial desde sempre impede-o de experimentar a vida em sua força criadora e multiplicadora de regalos.
Meu saudoso avô sempre me dizia que “o luxo é o regalo da vida”; não se referindo a posses materiais ou extravagâncias pueris. Ao que ele se referia e cabe aqui, diz respeito a promoção ou criação de mundos outros a partir do espontaneísmo e pela ânsia transbordante de vida; própria da vida que se expande, que ultrapassa os limites e se sobrepõe as contingências hodiernas. Este é o verdadeiro luxo.
Aos maus de coração que se endereça este desalento, deveriam ter como horizonte uma singela frase de Bertolt Brecht: Só alguém dentro de uma situação pode julga-la, ele é a última pessoa que pode julgar; mas, está versão acaba por deixar soterrada a inveja constituinte dos seres humanos em geral, e sua gana por reconhecimento egóico imediato e excludente.
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